Quando
recordo o tempo de Porto Amélia, muitas vezes me salta na memória o meu amigo
Armando Cepêda. Era um homem largo, inteligente e bondoso. No carão de
pugilista a linha dos olhos e a linha da boca traçavam, a miúdo, um sorriso
paralelo a deixar transparecer uma acomodada filosofia de vida.
Era
casado com D. Maria, senhora absoluta da Pensão Miramar. E digo senhora
absoluta porque ali quem mandava era ela. Nem o marido nem os filhos davam a
mínima ordem naquela nau de tripulação negra, capaz de todas as preguiças e
descuidos. Com dois berros e dois cascudos aquela criadagem indolente andava
numa roda viva. D. Maria era uma senhora robusta, de língua solta com sotaque
do Porto. Parecia um salpico, na costa de Moçambique, do pincel genial de Abel
Salazar, em momento de inspiração tripeira.
Armando
Cepêda mandava na sua oficina de reparação de motores de que era especialista
em Diesel. A oficina ficava na Rampa, aquela encosta medonha que nem a
bordadura de acácias rubras conseguia suavizar. Medonha e obrigatória na
ligação da parte alta com a parte baixa de Porto Amélia.
Passei
muitas horas naquela oficina entre carcaças da mais diversa maquinaria
avariada, à espera que Armando Cepêda lhe restituísse a serventia perdida. E
dava gosto ver aqueles dinossauros sair de um sono pesado e regressar ruidosamente
à floresta, com uma palmada na anca. Uma palmada que só o meu amigo Cepêda
sabia dar.
Conseguíamos
conversa entre roncos de motor e marteladas de todos os sons. E tudo servia
para dois dedos de conversa, a fazer sede para dois goles de cerveja. Guardo
ainda um cinzeiro de pé alto que Armando Cepêda me fez numa pausa do serviço. É
a estilização de uma cobra erguida na ponta do rabo a equilibrar meio coco na
fúria da cabeça.
Antes
e depois de jantar, Armando Cepêda derramava o corpanzil naquelas cadeiras do
jardinzinho da pensão à espera de todos os cansaços, de todos os tédios e
nostalgias. Recordo ainda o perfume adocicado das magnólias que o calor da
noite parecia libertar suavemente.
Os
hóspedes vinham chegando, um a um, à roda das cadeiras e a eles se juntavam
residentes de Porto Amélia para dois dedos de conversa. Pessoas vindas de toda
a parte pelas mais variadas razões, algumas delas muito roladas pelas mais
diversas geografias. Comerciantes, agricultores, médicos, funcionários
públicos, engenheiros, militares, todos enleados naquele fio de nostalgia
tropical que parece igualar todos os homens. As palavras iam ficando mais
espaçadas e moles com o andar daquelas noites suadas. Mas se a conversa caía
sobre o mato, Armando Cepêda erguia-se um pouco da posição quase horizontal,
para, pouco a pouco, dominar o assunto. E todos nos erguíamos um pouco também
para o ouvir contar histórias de camiões atolados no matope, dos perigos e dos
encantos do mato. E de caça. Armando Cepêda não era, digamos, um caçador de
safaris. Era caçador solitário, muitas vezes por exigência da esposa, quando a
despensa fraquejava. Apertado por ela, Armando Cepêda ia ao mato abater um
javali como quem vai ao fundo da capoeira buscar um frango.
Por
duas vezes o acompanhei nesta caça de subsistência. A ele e ao Jacinto dos
Caminhos de Ferro devo o conhecimento do mato. Sem eles a minha África teria
sido pouco mais do que uma África de cidade. Jacinto era uma velha glória do
Benfica. Ter sido guarda-redes das primeiras categorias era uma recordação que
lhe fazia ainda rebrilhar os olhos. Jacinto era um caçador tão metódico como
apaixonado. Dois pisteiros negros, o velho Land Rover, um bom farolim e a arma
escolhida para o tipo de caça determinado. E eu, às vezes, graças a Deus! Sim,
dou graças a Deus por ter vivido o emocionante espectáculo de andar a esmo pelo
mato, com o jeep aos solavancos, farolim a esquadrinhar os espaços mais
suspeitos e a surpreender os animais na intimidade da noite. Inesquecíveis
aquelas imbabalas saltitantes e graciosas como bailarinas a fugir ao palco de
luz que lhes oferecíamos. E aquela sensação de liberdade plena que se
experimenta, ao descansar nas quinandas, ouvindo o crepitar da fogueira e do
falajar dos negros contra o silêncio profundo do céu?
Sempre
me pareceu que Jacinto, mesmo a mexer na burocracia do seu emprego, tinha os
olhos no mato. Tanto que, mal deixava a secretária, caía no quarto a pintar. A
pintar o mato; sempre com animais em primeiro plano e, tão recortados, que
pareciam postos ali depois do quadro pronto.
Não era um bom
pintor. As telas eram o seu mato teórico para onde gostava de ir, a qualquer
hora. Uma vez, só porque me demorei um pouco mais a ver três gnus a pastar,
ofereceu-me o quadro. Na bagunça do regresso, o quadro perdeu-se. E tenho pena.
Estaria hoje numa das minhas paredes com as saudades da África a retocá-lo
todos os dias.
De
uma vez o Jacinto convidou também para a caça o Dr. Manuel Jóia, médico do
“Bartolomeu Dias”, ancorado na baía de Porto Amélia, em patrulha da costa de
Moçambique. Foi o seu baptismo de mato. O grande entusiasmo com tudo o que ia
acontecendo redobrou quando, ele próprio, abateu um javali. Entre as seis e as
dez da manhã é fácil encontrá-los nas áreas da sua predilecção. Passam como
carruagens de um comboio rápido. Jacinto aconselhou:
—
Aponte a um dos primeiros... Pode ser que acerte num dos últimos...
E
o Manuel Jóia acertou, julgando, a princípio, não ter acertado. O raio do bicho
com um rombo na barriga ainda se fartou de correr como se nada fosse com ele!
Depois lá caiu como se tivesse caído do comboio.
No
«Bartolomeu Dias» os oficiais comeram javali até lhe chegarem com um dedo e
festejaram o seu médico como um herói da selva.
Voltemos
ao meu amigo Armando Cepêda. Ele era, como já lhes disse, um caçador solitário.
Saía antes da madrugada e regressava antes do entardecer. Da segunda vez que
fui com ele «à carne» aconteceu uma coisa que me apetece contar.
O
sítio escolhido para o abate foi uma velha machamba de milho abandonada, entre
Porto Amélia e Mecufi.
--
Aqui é um sítio bom por causa dos restos do milho e não há macacos a
denunciar a nossa presença com a gritaria — disse o Armando Cepêda, saindo da
picada.
Não
havia meia hora de sol, quando apareceu um javali do outro lado da pequena
veiga que dominávamos completamente de onde nos havia-mos instalado.
Era um animal relativamente pequeno, a grunhir e a
estraçalhar a um e outro lado do focinho temeroso. Parecia nada recear e, no
entanto, toda aquela energia de patas e focinho parava, de vez em quando, como
se tivesse havido um curto-circuito. Depois de uns segundos de imobilização
total, a fúria do javali restabelecia-se para, daí a pouco, sofrer nova pausa.
--
O bicho está desconfiado... eles são muito desconfiados... — disse Armando
Cepêda, à boca pequena, sem tirar os olhos do javali.
Como
vinha na nossa direcção, a certa altura ficou a uma boa distância de tiro.
— Então! --perguntei baixinho.
Quanto
mais perto o abatermos, menos custa a arrastar para o jeep...
— Pois é... — disse, reconhecendo a minha
inexperiência. Armando Cepêda sorriu aquele sorriso de linhas paralelas. Quando
o javali ficou a uns trinta metros, perguntou-me se queria atirar.
— E se falho e não aparece mais nenhum? Não podemos
aparecer à D. Maria de mãos a abanar!...
— Deus nos livre!... Ninguém a
aturava!...
Soaram
dois tiros com intervalo de um segundo. O javali caiu no meio da erva como um
saco de batatas. Com um arame atado às patas de trás e um pau atravessado na
outra ponta foi fácil arrastá-lo até ao jeep.
O “mata-bicho” à sombra daquela mangueira isolada no
mato rasteiro, ainda hoje me sabe. D. Maria era uma senhora farta.
Arranjou-nos um farnel que dava para atravessarmos a África. Fígado de
cebolada, meio metro de omolete, carne assada, queijo, muito pão, cerveja e
água mineral. Do começar ao palitar, foi uma larga hora a comer. A comer e a
contar coisas.
No fim de arrumar a tralha, com o método e a lentidão que o caracterizavam,
disse o Armando Cepêda, já todo contente com a ideia:
—
Vamos cumprimentar o meu amigo Rosas! É chefe de posto aqui perto. Vai ficar
todo contente!
Era
realmente ali perto e o senhor Rosas ficou todo contente. Quis logo que nos sentássemos
na varanda e foi dizendo:
— Vindes em boa altura! Tenho uma esplêndida carne de
búfalo novo; vou já arranjar uns bifes e umas costeletas...
— Para mim, não! — cortei, aflito.
— Ora essa!... Por quê?! — admirou-se o
senhor Rosas.
— Desculpe... é que acabámos agora mesmo de comer este
mundo e o outro...
—
Bem... Bem! — respondeu desalentado, mas logo a berrar lá para dentro:
— Hassan!
Apareceu um negro, a limpar as mãos, a fazer vénias e a sorrir de
orelha a orelha.
—
Prepara uns bifinhos e umas costeletas daquela carne... com aquele molho... Tu
sabes como é!
Hassan
sabia como era. Meia hora depois, apareceu na varanda com uma travessa enorme
no meio de uma pequena mesa portátil, já posta para três pessoas. O cheiro da
carne apanhou-me de surpresa. Era de tal maneiras agradável e penetrante que
até as glândulas salivares me doeram!
—
Vai uma pontinha,
doutor, só para provar? — perguntou-me o senhor Rosas de olhinho irónico.
— Isso cheira pela vida... — consegui
dizer em plena vertigem.
A
pontinha de carne que o senhor Rosas me pôs no prato «só para provar» foi uma
costeleta do tamanho de uma raquete de ping-pong, espessa, suculenta e
aromática...
A
princípio com uma certa cerimónia e depois com uma certa gula lá fui andando
pela costeleta fora. Acabei a «raquete» como mandam as regras: pegando-lhe pelo
cabo...
Quando pousei o osso rapado, diz-me o senhor Rosas com
sorriso de vitória:
— Então, doutor, estava boa?
A
vitória não foi do senhor Rosas. Foi da África. Daquele sentir tudo de novo, como
uma estreia dos sentidos, em cada momento que passava.
Conheci Megama Abul Kamal muito antes de o vir a
encontrar, frequentemente, na Pensão Miramar. Megama era régulo do Chiúre, com
influência religiosa numa larga faixa de terreno entre o Rovuma e o Lúrio.
Homem abastado, senhor de terras e camiões, era também transportador habitual
da grande companhia algodoeira Sagal.
Fui
a sua casa a convite do Armando Cepêda, chamado a consertar o motor de um poço.
Nas apresentações vi que eram grandes amigos. Julgo que, por isso, Megama me
olhou logo com respeito e franqueza, sem duvidosa humildade dos negros daquele
tempo.
O
motor ficou composto num instante. Nós levámos mais tempo... Megama quis que
provássemos de todos os seus petiscos. Seu era também o café, da planta à
chávena.
A
mãozada firme e confiante com que nos despedimos havia de repetir-se, vezes sem
conta, por todo o meu tempo de Porto Amélia.
No
regresso ao jeep, ouvi falas e risinhos por detrás de uma paliçada. Notando a minha
estranheza, Armando Cepêda logo me esclareceu:
— São as mulheres de Megama...
Na
cidade, vim a saber pelo Jaime Ferraz que deveriam ser umas sete... Em Porto
Amélia o Jaime sabia um pouco de tudo!
Um
dia, Megama apareceu no Hospital Militar todo dobrado e cheio de dores. Era uma
hérnia estrangulada, há três dias...
Os
cirurgiões costumam «berrar» com os doentes por virem tão tarde, em evidentes
situações de solução cirúrgica. Mas o Dr. Manuel Simões Coelho não berrou.
Tratava-se de Megama Abdul Kamal! E por se tratar de tão importante personagem
o post-operatório teve aspectos de peregrinação.
Vinham
negros de toda a parte, trazidos por aquele fio invisível que é o sentimento
religioso, temperado na fé e na obediência.
Com o vai e vem da gentiaga, a vida do hospital acabou
por se perturbar. Ao ponto de, pelo terceiro dia, o Simões Coelho me pedir:
--
Tu, que és todo amigo do Megama, podes garantir-lhe que está livre de perigo,
que tudo vai correr bem... e pedir-lhe que faça constar as suas melhoras, a ver
se acaba esse corrilório!...
Assim fiz. Megama compreendeu e actuou muito bem. As
visitas acabaram de um dia para o outro. Nem umas só voltou a aparecer! Ainda
hoje me espanta o extraordinário poder de comunicação dos negros naquelas
lonjuras primitivas, sem rádio, sem telefone e sem correio.
Armando
Cepêda era um caso curioso de fotógrafo. Nem amador, nem profissional. Era
fotógrafo de ocasião, para ganhar uns cobres suplementares. Essa ocasião surgia
quando os indígenas precisavam de retrato para a caderneta.
Dava-lhe
jeito aproveitar os domingos, que no mato não têm qualquer significado. Era
sempre recebido nas aldeias com grandes manifestações de contentamento. Nas
pausas da algazarra, fotografava quatro negros de cada vez, sentados numa
tábua. Depois, no «estúdio», a tesoura lá os separava. No domingo seguinte, a
caminho de outra, passava pela aldeia fotografada e distribuía os retratos.
Havia corridinhas e gritos de alegria, com todos a querer ver a cara de cada um
no retalhinho de papel.
Um dia houve um pequeno acidente... Toda a gente
parecia satisfeita, quando apareceu uma reclamação, já com o jeep a ronronar a
partida.
— Patrão!... Patrão!... esta não é do
nosso!
— Não é tua?! É tua, sim senhor! — garantiu Armando
Cepêda, olhando para o negro e para o retrato.
-- Não é!... Não é!... Nosso não tem
chapéu!
Armando
Cepêda sabia lidar com os negros. O grande respeito e admiração que lhes
infundia emanava do seu grande espírito de justiça e bondade. Além disso, era
um branco forte, compunha máquinas e matava leões.
Não
teve a mínima dificuldade em desfazer o equívoco. Pôs a mão no ombro do negro e
sossegou-o, assim:
-- Ah!... o chapéu?... Fui eu que pus. É saguate! Os olhos do negro
rebrilharam com aquela gorjeta inesperada. Depois vieram as palavras de
gratidão de uma boca babada de riso:
-- Brigado, patrão!... Brigado,
patrão!...
E partiu, a
misturar-se com os outros. Talvez a fazer-lhes inveja.