A BIBLIOTECA DO MACUA

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LIVROS & AUTORES QUE A MOÇAMBIQUE DIZEM RESPEITO



JOSÉ ÁLVARO LOPES



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PRÓLOGO

Ao longo da costa oriental do continente africano estende-se um país -Moçambique- antiga Província Ultramarina portuguesa e hoje país independente. Aqui, existe uma cidade -Inhambane- a cuja baía as naus de Vasco da Gama aportaram em 1498 na viagem da descoberta do caminho marítimo para a índia. Era a primeira vez que um europeu era visto pelos indígenas da região que, ao contrário do que era suposto, se mostraram, não só pacíficos mas cooperantes com os homens da frota do grande capitão, o que lhes mereceu a designação de "Terra da boa Gente", que conservaram através dos tempos.
É uma cidade cujas características especiais a tornaram diferente de todos os outros aglomerados populacionais estabelecidos ao longo da extensa costa. Situa-se numa península formada por uma área de terreno entre o mar e uma baía, esta com cerca de 25 quilómetros de extensão a partir da barra. Quem ali chegava por terra, viajando ao longo da estrada que a liga à Capital, - ao tempo, Lourenço Marques - percorria uma pequena distância , tendo à sua esquerda a vista do panorama formado pelas águas azul-turquesa da baía, riscadas pelas linhas verticais dos troncos das palmeiras que a marginam e do lado oposto uma povoação de nome Maxixe. A primeira impressão que se sentia ao entrar na cidade era a de que nos encontrávamos num lugar aprazível e acolhedor. Esta sensação era-nos transmitida pelo aspecto de asseio e ar cuidado em que as ruas eram mantidas, limpas e alcatroadas e edifícios com aparência de terem recebido os benefícios de pintura recente. Era agradável ainda notar que as áreas relvadas e canteiros de flores mereciam os cuidados e atenção frequentes dos jardineiros encarregados da sua manutenção. Outra circunstância que tornava a cidade atraente era o facto de fazer parte da paisagem a baía, ilustrada pelo pontuado das velas brancas dos barcos que faziam a travessia para a outra margem, transportando pessoas e mercadorias. Esta particularidade trazia-lhe o benefício de horizontes amplos, desafogados, que contribuíam enormemente para a atracção do conjunto.
Era a esta terra que chegava, ele, o imigrante, exilado voluntário; terra que escolheu para sobreviver e lutar, na esperança de colher os benefícios que resultassem do seu esforço, aquilo que a muitos era negado na sua Terra Natal. Mas não esqueceu o cantinho que deixou numa esquina da Europa, e onde volta, logo que lho permita o prémio ganho pelas actividades e energia despendidas nos seus afazeres, a minorar saudades de ver novamente os lugares que o viram nascer e criar, e que lhe sorriem, como convidando-o a sentar-se novamente à sombra do carvalho frondoso, a contemplar a paisagem que tinha levado gravada na alma quando dali se afastou.
Em tempos idos, Inhambane tinha sido um porto de mar para exportação dos produtos principais da sua agricultura - algodão, amendoim, copra e outros - transportados pêlos barcos costeiros para a Capital, onde eram transferidos para os barcos de longo curso. Em resultado desta actividade, uma linha de caminho de ferro com a extensão de apenas uns 80 quilómetros, transportava do interior os produtos para o porto de mar. A linha chegando à cidade, atravessava esta, correndo ao longo da avenida principal, do lado Sul, cerca de 3 metros afastada das casas, mas dificilmente se notava a sua existência por ser coberta pela relva de um tabuleiro, um pouco alteado, que também corria no mesmo sentido.
Em 1956 a linha tinha caído em desuso por falta de produtos a transportar.
A pequena comunidade que ali vivia e trabalhava era constituída, naquela época, por umas centenas de pessoas que, sem contar com os naturais, se dividiam em três grupos étnicos principais: europeus, indianos e muçulmanos, em perfeita harmonia de convívio e respeito mútuo.
Ali permaneci cerca de 20 anos, -1956/1976 - . É deste período que vou procurar registar os episódios que mais relevância tiveram no decurso daquele espaço de tempo em que vivi nessa encantadora pequena cidade , acontecimentos em que tomei parte, a que assisti, ou de que tive conhecimento.
Atingi uma idade que me faz sentir a urgência de escrever as minhas memórias, pela impossibilidade de repetição dos acontecimentos com o mesmo interesse dos que me fizeram sentir aquilo a que chamarei a pirâmide da minha vida, cujo vértice virá a ser inexoravelmente atingido, com toda a probabilidade de não se situar a muita distância no tempo. (Nasci em 1917).
A profunda nostalgia desses acontecimentos e lugares onde decorreram e por onde me ficou presa a alma, levou-me à decisão que tomei de partilhar essas memórias com os meus semelhantes e amigos queridos, cuja convivência contribuiu para fazer de mim um homem feliz, durante o espaço de tempo em que tiveram lugar, enquanto me é possível coordenar duas ideias. Toda esta cavalgada de recordações mantém-se fresca nos meus sentidos, pela intensidade com que foram vividos os factos narrados.
AMIGOS LEMBRADOS
Aqueles que me distinguiram com a sua amizade e a cuja convivência devo os melhores momentos que vivi na minha passagem por terras de África.
- Deste lado da Vida -
José António Calvo da Silva Rocha, Francisco Nelson de Lima, José da Silva Martins, Isildo d'Almeida, José Bernardo d'Almeida, Sebastião Machado, Levi Sebastião da Cunha Vaz, Arnaldo Macedo Fernandes, António Pereira da Silva Drs.: Mário Ferreira Gonçalves, Vítor Manuel Serraventoso, Frans Neser, Jan Kempt, Leon Jordan, Chris Botha, José Dinis Salvador Paralta, Frik Van Wyk, Christian Neser, Caseiro Rocha, Desembargador Danilo Alves Martins, e ainda: Momade Chicalia, Carlos Mimoso, Alfredo Lopes Tomé, Comandante Cristiano de Sousa, Arq. António de Sá Pires, Fernando Madeira, Francisco Edgar Ferreira, José Guerra, António da Silveira Ramos, Peter Kaye, José Eduardo Paralta, Fernando M. Marques Magalhães, Verónio de Sousa, José Luis G. Matoso, F. Mesquita, Nuno F. Noronha, Armando Lemos, Joaquim Oliveira, José António Bernardo d'Almeida, Dick Pollit, Carlos Alcobia, José Aníbal d'Almeida, Francisco Guita, Armindo Videira Martins. João Manuel Cardoso, Álvaro Fernando Cardoso.
- Do outro lado da Vida -
Gilberto da Silva Pauleta, Joaquim Leitão, Danton d'Abreu, Joaquim Melo, António Calafate, Joaquim Costa Deitado (Pai), Vitor Nunes, David Gray Peter Betton, Bob Blundell, Stewart Gilkison, Rui Rolo, Vincent Hessa. Doutores: Armando Dionísio, Saul Jorge, Vasco Soares de Melo, F.Deppinar, Chris Botha, Neylor Rauch, Rui Nogueira, e, ainda: John Hardy, Jimmy Haveman, Arthur Fallick, Luís Tibúrcio, Joaquim Botelho, Fernando Cardoso, Nuno Ferro António, António Lopes da Cruz, José d'Almeida Maia.
Aqueles que ainda me podem escutar, pedirei:
Amigos duetos que a Vida apartou
Do grato convívio, das sãs alegrias;
Não deixeis que a Sorte, que nos separou,
Esmoreça a chama dos ditosos dias.
(As histórias estão a seguir)



JANGAMO-MOREIA


Da tripulação de um dos barcos costeiros que escalavam Inhambane, fazia parte um imediato, conhecido do meu querido amigo Zé Rocha, que costumávamos ir visitar a bordo para conversa amena que lhe quebrava a monotonia dos dias sempre iguais das viagens ao longo da costa. Numa dessas ocasiões o capitão veio juntar-se a nós e a conversa incidiu sobre as nossas pescarias e sobretudo no prazer que nos dava a caça submarina. O capitão lamentava não poder participar numa dessas nossas actividades por ser obrigado a cumprir horários que o impediam.
-Se eu podesse ir um dia convosco; disse ele, havia de tentar arpoar uma moreia: a minha mulher tem uma receita que torna a moreia num prato delicioso.
-Capitão; disse o meu amigo; fique tranquilo que a primeira vez que formos à praia, vamos tentar trazer-lhe uma. No sítio em que nós costumamos mergulhar já as temos visto; é questão de as procurar nos lugares que elas preferem.
O capitão: -Ficava-lhes agradecido.
Nos nossos fins-de-semana passados na praia, -em Jangamo-eramos por vezes seis ou oito no bando, em dois jipes, pelo que as refeições eram constituídas, a maior parte das vezes, por caldeiradas de peixe, pela possibilidade de ser cozinhada em quantidades razoáveis. Para isso costumávamos recorrer à amabilidade do dono do Hotel de Inhambane, que nos cedia um tacho grande.
Foi o que fizemos no dia em que fomos à praia, depois da conversa com o capitão. Como tínhamos prometido, tentamos uma pesquisa mais cuidadosa que resultou em arpoarmos uma boa moreia.
A melhor forma de a transportar foi metê-la dentro do tacho, com a tampa posta para evitar que o pó entrasse durante a viagem. Chegados à cidade fomos ao hotel devolver o tacho e agradecer. Ao mesmo tempo pedir o favor de nos guardar a moreia num dos frigoríficos, até à vinda do barco, por não podermos fazê-lo em qualquer dos nossos, dado o pequeno espaço disponível.
O gerente do hotel -Rodrigues de seu nome - não teve a mínima dúvida em satisfazer-nos o pedido e quando lhe entregamos o tacho, ele destapou-o por curiosodade, e nós vimos um sorriso aflorar-lhe aos lábios, sem sabermos o que significava. Não tardou a termos a explicação.
O edifício do hotel era constituído por quatro alas, no meio das quais existia um pátio. Este tipo de arquitetura tinha a vantagem de permitir uma maior ventilação aos quartos, que ficavam com dois pontos em que o ar podia circular.
O rés-do-chão era ocupado pela sala de jantar com ligação interior para a cozinha e esta situava-se na ala em frente da entrada, do lado oposto, com o pátio de permeio. Quando o Rodrigues recebeu o tacho e sorriu, disse-nos: -Esperem; vou mandar isto para o frigorífico. Em seguida chamou para a cozinha: -Ó cozinheiro; vem cá buscar isto para pôr no frigorífico. O homem não se fez esperar. Quando chegou, o Rodrigues disse-lhe; -Olha; leva isto para o frigorífico grande. Ao dar a ordem destapou o tacho para o homem ver o que tinha de levar. O cozinheiro olha para dentro do tacho: vê a moreia enrolada; os olhos ábrem-se-lhe numa expressão de terror, dá um salto para trás; dá meia volta e principia a correr; ou melhor; ele não corria, ele afastava-se aos pulos. Depois dum salto, mal tocava no chão e saltava outra vez, como que impelido por uma mola e enquanto pulava, gritava "nhoca...nhoca" ...nhoca." Chegado à cozinha escondeu-se para não o chamarem outra vez, recusando-se a obedecer ao patrão.
A palavra "nhoca " é o nome que os africanos nesta área dão às cobras e há uma espéecie que é particularmente odiada e temida por eles, e reponsável pela morte de muitas pessoas todos os anos. Estas são as "mambas"; uma espécie altamente venenosa que pode matar ou infligir sofrimentos atrozes.

Edição de 1999

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