A BIBLIOTECA DO MACUA

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LIVROS & AUTORES QUE A MOÇAMBIQUE DIZEM RESPEITO



COSTA MONTEIRO



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COSTA MONTEIRO


Fernando da Costa Monteiro Vouga, nasceu em Lamego, em 1940. Após ter terminado os seus estudos liceais, alistou-se como voluntário no Exército, tendo ingressado na Academia Militar onde frequentou o curso de Cavalaria.
Promovido a oficial, foi colocado em várias unidades da sua arma. Fez três comissões em África nos três teatros de guerra. Depois desempenhou diversas funções, em que se destacam oito anos como professor do Instituto de Altos Estudos Militares, em Lisboa.
Frequentou cursos profissionais, dois dos quais nos Estados Unidos. Terminou a sua carreira militar como oficial de ligação junto à Agência Logística da OTAN, no Luxemburgo, com o posto de coronel. Reformou-se aos cinquenta e dois anos.
Travessia é a sua primeira obra de ficção.



PREFÁCIO

Há cerca de dois anos que abandonei definitivamente a minha actividade profissional, aceitando as condições favoráveis de uma reforma antecipada. Foi uma decisão que teve em linha de conta vários factores, nos quais ponderei os eventuais efeitos negativos de uma possível inactividade, do abandono de uma carreira interessante e de uma camaradagem de que gostava. Mas sempre acalentei o desejo de me retirar cedo da efectividade do serviço, a tempo de experimentar outro género de trabalho sem o constrangimento dos horários e com a faculdade de dispor dos meus recursos em plena liberdade.
Comecei a ler muito cedo. Aos quinze anos, aproveitando a vasta biblioteca do meu Pai, já tinha lido quase toda a obra de Eça e grande parte da de Camilo, além de outros. A partir daí, sempre desejei escrever. Pareceu-me que chegou a hora de começar a realizar o sonho mais caro da minha adolescência. Foi por isso que resolvi dedicar o meu tempo a fazê-lo. Para mais, embora não seja proibido, escrever dá-me prazer.
Este meu primeiro trabalho é um simples conjunto de pequenas histórias destinadas a ganhar balanço para outras digressões no campo da comunicação escrita. A maioria delas são inspiradas nos seis anos que vivi em África, em plena guerra colonial, talvez o período mais interessante da minha vida, apesar da guerra. Não pela guerra em si, mas pela oportunidade que tive de contactar com outras terras, outras civilizações, outros costumes, outras gentes. Seis anos que abalaram muitas das minhas convicções sobre aquilo a que teimamos chamar civilização. Mesmo considerando como melhor a nossa, civilizar outros povos, impor os nossos padrões de civilização, pode assemelhar-se a plantar eucaliptos fora da Austrália ou criar crocodilos no Alentejo. As vantagens a longo prazo podem não ser as melhores.
Estive em Moçambique, na Guiné e em Angola por causa da guerra. Guerra esta que, como todas as outras, tem leis e princípios que não se violam impunemente. Talvez por essas razões, fiz a guerra o melhor que pude e que sabia. No mínimo, por respeito por mim próprio e pela vida e integridade de centenas de jovens que me foram confiados. Acredito que a guerra é uma doença da sociedade. Não há doenças justas ou injustas, há apenas doenças más. Catalogar as guerras em justas e injustas pode não passar de um mero exercício intelectual, talvez bom para os moralistas, que se esquecem que as coisas são como são e não como deviam ser. Na prática, a guerra tem sido sempre justa para quem a ganha, porque os vencidos deixam de ter voz... Classificar como boas ou más as pessoas que, por uma razão ou outra se viram envolvidas numa guerra, não passa, em muitos casos, de uma operação de cosmética destinada a desviar a atenção das verdadeiras razões que estão na origem dos conflitos.
Funchal, Janeiro de 1995
Costa Monteiro


PRETO ou BRANCO?

   Havia mais de um ano que a Dona Lourdes, como lhe chamavam, tinha chegado a Moçambique. Começava a sentir-se ambientada às novas condições de vida no mato, quando verificou que esperava o seu primeiro filho. Se bem que fosse um acontecimento há muito desejado, sentiu-se angustiada ao imaginar a falta de condições de que dispunha. O médico ficava longe, em António Enes, os recursos da enfermaria da missão eram limitados e, quando a criança nascesse, não lhe seria fácil tratar dela tão bem quanto desejaria. Se estivesse na Metrópole, teria o apoio da família. Além disso, poderia comprar tudo o que fosse preciso, sem qualquer dificuldade.
Era a professora da Missão, embora tivesse só a quarta classe. Tinha sido educada em casa de um tio padre, que vivia com duas irmãs ex-freiras. Estas tiveram que renunciar à clausura, por força das perseguições que as ordens religiosas sofreram após a implantação da República. Dedicaram o resto das suas vidas a cuidar do irmão padre e a educar os sobrinhos que o desejassem. Os rapazes, quase todos, prosseguiram os seu estudos até à universidade. As raparigas ficavam-se pela quarta classe, mas aprendiam Francês, a tocar piano e outras prendas domésticas, para serem mais tarde boas donas de casa, dentro dos preceitos da Santa Madre Igreja, bem entendido.
Foi durante obras realizadas na residência do seu tio, em Penude, que a Lourdes conheceu o António, um jovem mestre marceneiro de Lamego. Rapaz bem parecido e decidido, ao aperceber-se dos olhares da sobrinha do padre, não perdeu tempo. Encontrou-a ao dobrar duma esquina e, de chofre, propôs-lhe casamento.
As tias não viam com bons olhos aquela união. O mestre António parecia ser boa pessoa, mas era de origem humilde. No fundo das suas convicções, eram contra o casamento. A ter que acontecer, desejavam que a sobrinha o fizesse com alguém mais importante. Tinham até um médico em perspectiva... Mas um rapaz da cidade, que fez a tropa em Lisboa, nunca se sabe... A Lourdes poderia perder-se. Por mais conveniente e abençoado que fosse o sacramento do matrimónio, para elas não passava de uma sucessão de pecados, que Deus se limitava a tolerar. O Sacramento da ordem permitia uma vida muito mais perfeita. Maria, mãe de Jesus, era virgem, José, seu marido, também, e, por exemplo, a Rainha Santa e Nuno Álvares Pereira, tal como outros santos que foram casados e tiveram filhos, acabaram os seus dias no convento na mais severa castidade.
Foi o próprio tio que os casou na capela da sua residência, bem contra a vontade das farisaicas irmãs. Elas, em troca daquela bênção, conseguiram que a cerimónia fosse quase em segredo. Além disso, convenceram o irmão a arranjar-lhes um emprego tentador o mais longe possível...
António e Lourdes, tal como Adão e Eva ao serem expulsos do Paraíso, foram recambiados para as paragens longínquas de Moçambique. E que havia em Angoche uma missão católica que carecia de uma professora e de um mestre carpinteiro. O jovem casal estava mesmo a calhar.
Na Régua, apanharam o comboio da madrugada para o Porto, depois de uma longa caminhada a pé pela calada da noite, desde Lamego, levando por companhia o almocreve que puxava pela trela a mula que lhes transportava a bagagem. Embarcaram em Lisboa num ronceiro paquete a vapor, que parava em todos os portos, desde o Funchal até Nacala, onde terminou a viagem.
A missão ficava no fim do mundo, se é que tal sítio existe. Era um local digno de um filme de aventuras, onde a beleza da paisagem se mistura com as gargalhadas das quizumbas1 e os rugidos dos simbas2. Estes atreviam-se a atacar as palhotas que circundavam a missão, conseguindo por vezes meter o dente num ou outro negro menos precavido. Talvez por temerem o aspecto, que lhes era ainda estranho, os brancos raramente eram vítimas dos seus apetites. Quando o faziam, era apenas quando se sentiam ameaçados.
Estava-se na fase heróica da penetração branca nos sertões de África, quando ainda a prisão do Gungunhana estava fresca na memória de todos. Cobras enormes, serpentes venenosas, ataques de formigas e abelhas eram parte do quotidiano daquelas paragens. Um dia, o António deparou com um grupo de macuas, os habitantes da região, em pânico por causa duma cobra. Ao tentar matá-la com um pau, ignorando os gritos dos presentes "senhor António, não mate cobra que fica cego", viu-se atingido nos olhos por um jacto de saliva que lhe causou dores horríveis nos olhos e cegueira temporária por dois dias.
O meio era inóspito. Tomava-se quinino, uma poção amarga para atalhar o paludismo. As disenterias e febres eram o pão nosso de cada dia, e a mosca do sono fazia estragos. Para mais, os Macuas olhavam os europeus com desconfiança e o islamismo estava fortemente instalado na região. A presença de indianos islamizados, os monhés, era grande, e controlavam praticamente todo o comércio. Temiam-se ainda sublevações contra a presença branca. Os sintomas de instabilidade eram visíveis e a confiança mútua era frágil.
Os géneros alimentícios, de consumo exclusivo dos europeus, nem sempre se conseguiam no mercado local ou a preço razoável. A caça era abundante e caçava-se para comer. Nas imediações da missão havia terrenos alagadiços onde cresciam enormes patos. Eram tantos, que aos caçadores macuas que trabalhavam para a missão, eram dados apenas dois cartuchos com a obrigação de trazer, pelo menos, três patos!
O desejado correio chegava nos dias de S. Vapor. À noite, contavam-se extraordinárias aventuras de caça, descreviam-se viagens tormentosas nas picadas africanas ou recordava-se, com saudade, a longínqua metrópole.
Apesar das dificuldades, o jovem casal gostava daquela vida simples, mas cheia de interesse. Viviam numa pequena casa da missão. Era uma vivenda de estilo colonial, com uma enorme varanda à frente, para a qual subiam meia dúzia de degraus. O telhado era de chapa ondulada. Embora estivesse em bom estado, começava a ficar acastanhado da ferrugem. Para a tornar mais fresca, a casa foi construída debaixo de um gigantesco poilão, uma árvore majestosa que tinha o vício de largar os frutos por cima do zinco do telhado. Pareciam granadas a rebentar...
Tinham três criados, um luxo! O mainato, que arrumava a casa e "achava" dinheiro nos bolsos do patrão, o moleque que fazia os recados no exterior, e o cozinheiro, o José, cuja especialidade era "prato filhodaputa", nome dado por um antigo patrão a uma espécie de feijoada com carne de pato. Como não tinham ainda filhos, não dispunham de macaiaia, um criado adolescente destinado a tomar conta das crianças.
Os alunos da escola absorviam com avidez e curiosidade os ensinamentos da fessora, enquanto os rapazes, na oficina, aprendiam a fazer móveis e davam largas aos seus instintos artísticos ao fabricarem, em pau-santo, os mais belos objectos decorativos. À tarde, Lourdes ensinava as raparigas mais velhas a trabalharem com a máquina de costura, a bordar e a confeccionar as próprias roupas. Os tecidos eram da mais variada proveniência. Na maioria das vezes, era o pano branco dos sacos de farinha a resolver as necessidades mais prementes.-
O tempo passava e a criança crescia no ventre materno. O berço, feito na oficina, já estava em casa, e o enxoval só não estava pronto porque a futura mãe achava que a roupa nunca era suficiente.
A notícia da gravidez espalhou-se como fogo. Algo de insólito estava para acontecer... E que era a primeira vez que se esperava um nascimento de pai branco e mãe branca. Pais brancos havia muitos, mas sendo as mães todas pretas, os efeitos eram sobejamente conhecidos...
A criança nasceu sem problemas. Era um belo rapagão que se iria chamar António, como o pai e o avô. O padrinho ia ser o Padre Castro, o superior da missão, e a madrinha, como não havia mulheres brancas nas redondezas, ia ser a própria Nossa Senhora...
A notícia do nascimento espalhou-se, mais uma vez, com incrível rapidez e o insólito voltou a acontecer. De um dia para outro, a missão viu-se rodeada de centenas de homens, mulheres, e respectivas crianças, que assentaram arraiais nos terrenos vizinhos. Queriam ver o menino. Contrariada, a mãe lá consentiu que a ama saísse para a varanda com a criança nua nos braços. Ao mostrá-la, ouviu-se um extenso murmúrio. Afinal, o recém-nascido não era muito diferente dos outros. A pele era também encarniçada e o nariz arredondado, mesmo achatado. Só o cabelo é que não dava mostras de ser encarapinhado.
Recolhido o bebé ao quarto, verificou-se que ninguém abandonou os terrenos da missão. Pelos vistos, a curiosidade não estava ainda satisfeita. É que as crianças pretas só adquirem a sua cor definitiva ao fim de alguns dias. Tal facto originou duas correntes de opinião e fortes discussões. Uns argumentavam que sendo o pai branco e a mãe branca, o menino ia continuar branco. Os outros defendiam que, tendo nascido em África, iria ficar preto, como toda a gente. Só arredaram pé quando, findo o prazo normal de mudança de cor, a criança continuava cada vez mais branca...

1 Hienas.
2 Leões.

Edição de 1996

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