A BIBLIOTECA DO MACUA

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LIVROS & AUTORES QUE A MOÇAMBIQUE DIZEM RESPEITO



FRANCISCO JOSÉ VIEGAS



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Francisco José Viegas nasceu em Vila Nova de Foz Côa em Março de 1962. Foi colaborador de vários jornais e revistas, e autor de programas de televisão como "Escrita em Dia", "Ler para Crer", "Falatório", "Prazeres", "Um Café no Majestic" ou "Avenida Brasil". Actualmente, depois de ter dirigido a revista "Ler" durante treze anos, é director da "Grande Reportagem" e colunista do "Jornal de Notícias" e da "Elle".
A sua obra é considerada uma das mais inovadoras dos anos oitenta e noventa, ao conciliar géneros aparentemente tão diversos como o romance policial e a poesia.
No catálogo da ASA figuram os seus romances Morte no Estádio, As Duas Águas do Mar, Um Céu Demasiado Azul, Um Crime na Exposição e Um Crime Capital.
Parte da sua obra está em curso de tradução na Alemanha.
Ilustração da sobrecapa:
Hotel Polana, Lourenço Marques,cerca de 1925


Esta é a história de um homem que sonhava com Lourenço Marques. Não com a Lourenço Marques colonial e militar - apenas com "a cidade das acácias, a pérola do ĺndico", a cidade onde amou pela primeira vez. Vinte e sete anos depois de ter saído de Moçambique, ele regressa para procurar uma mulher, Maria de Lurdes (aliás Sara): de Maputo a Pemba e a Nampula, da Ilha de Moçambique ao Lago Niassa, essa busca transforma-se num discurso iniciático sobre a nostalgia de África, o encontro com Deus, a felicidade, a aceitação, o arrependimento, o amor que se perde e a vida que não se viveu. Ao longo dessa viagem encontra Domingos Assor, um polícia que investiga o assassinato de Gustavo Madane, um ex-combatente nacionalista caído em desgraça - e que tem visões, durante as quais pensa ser um "rabino negro e perguntador", que confunde o monte sagrado dos macuas, o Namuli, com o Sinai do deserto egípcio. Ouve as palavras do xehe da mesquita da Ilha de Moçambique, que lhe recita, de trás para a frente, os versículos do Corão. É tratado pelo último médico branco de Lichinga, no Niassa, que ali aguarda a chegada da morte depois de ter sido abandonado pela mulher e de saber que tem cancro. E recorda a Lourenço Marques dos anos setenta como a metáfora dessa vida interrompida pela guerra e pela felicidade dos outros.
Uma história inquietante e perturbadora sobre a memória portuguesa de África, longe da guerra e dos complexos de culpa coloniais. O regresso de Francisco José Viegas ao romance, com aquela que é, para já, a sua obra-prima.


                                                                                      I
        Só às seis da manhã descobriram o corpo, embora este já estivesse exposto à luz do dia que nascera há muito e, aparentemente, nada o escondesse. Estava deitado de costas, com o rosto voltado para o céu azul e sem nuvens dessa manhã de Março de 2001, com os dois braços muito abertos, terminando o esquerdo numa mão cravada no chão de saibro ainda húmido. Àquela hora ninguém o reconheceu, talvez porque as primeiras pessoas a entrar no recinto da feira fossem empregados do serviço de limpeza, arrumadores e um encarregado da vigilância que mais tarde se viria a apurar estar ainda bêbedo desde o início da noite anterior, e que tinha dormido perto, num barracão que servia de armazém a um dos restaurantes do lugar.
       Não se ouviu nenhuma sirene da polícia, contra o que era costume acontecer, mas talvez isso fosse assim por ser de manhã, bem cedo, apesar de os ferries já terem iniciado a travessia de uma margem para a outra da baía e de os primeiros vendedores ambulantes se terem abrigado sob os coqueiros da avenida ainda deserta, aguardando o sol, encostados às bancas  onde expunham papaias, mangas, marisco, peixe, sal, farinha de milho ou caju.
"Gustavo Madane."
Disse isto o homem a quem um outro chamara sargento, depois de ter levantado o pano colorido que cobria o corpo. Mas ao sargento faltava acrescentar qualquer coisa quando se ergueu e desabotoou o bolso direito da camisa bege que não era a da sua habitual farda de polícia.
"Cabrão", disse então, enquanto começava a escrever no bloco que tirara da camisa. "Cabrão. Cabrão e cabrão outra vez."
"É uma muito má, sargento. E esganado", disse o outro, fardado, que o acompanhava à distância e que conduzira o carro que os transportava na direcção do cais. O carro era um Volvo azul-escuro e, à partida, nada o indicava como pertencendo à polícia. Nada senão as fardas de um dos dois homens que saíram de dentro quando um grupo os mandara parar, em plena avenida marginal, para lhes dizer que havia um morto ali dentro, um morto à espera na Facim.
"Alguma vez tinha de lhe acontecer. Aconteceu agora", voltou o sargento. "Já chamaste a ambulância?"
"Não."
"E que estás a fazer?"
"À espera de ordens."
"Estou a dar-te as ordens. Chama ambulância e brigada."
"Sim, sargento."
"Bom", disse ele, olhando outra vez para o morto. "Vai dar problemas."
"Dá sempre."
     "Não percebes nada disto, pá. Nada. Não conheces o tipo?"
"Não."
"Madane. Gustavo Madane. Capitão Madane. Frelimo. Comando do Norte. Niassa. Quinze anos de guerra, desmobili-zado em 1993. Tratava o Samora por tu. E havia de tratar o Mondlane por tu, se o Mondlane estivesse vivo."
•E se o Samora também estivesse."
"Não percebes nada, pá. Era melhor que nem o tivéssemos visto. Agora, ninguém vai querer ficar com isto, ninguém vai querer trabalhar isto, pá. Este tipo estava morto há muito, Armando. Mas ninguém lhe tinha dito."
"Ninguém lhe tinha dito?"
"Ninguém. Mas estava morto há muito tempo. Há dois ou três anos, pelo menos. E, antes, estava condenado à morte pêlos tipos que estiveram lá em cima, na reeducação, no Norte. Madane era filho da puta no Maputo e era filho da puta no Niassa. Vai chamar a ambulância."
"Onde?"
"As putas das cabinas estão todas fodidas, mas há um telefone na Maxaquene. Já lá está gente. Vai e volta. Eu fico."
"Sim, sargento."
O sargento viu-o partir, entrar no carro, ligar a ignição e pôr-se em marcha na direcção da saída do parque. Depois, acendeu um Palmar e entrou num dos restaurantes onde as mulheres da limpeza cochichavam. Calaram-se quando ele entrou.
"Onde está o telefone? Serviço da polícia. Vamos."
Uma delas apontou para um canto, atrás do balcão, e o sargento atravessou a sala de chão de cimento até ao lugar onde o telefone estava escondido, debaixo de uma caixa de cartão. Marcou um número, com lentidão. Ultimamente, os telefones funcionavam como devia ser, mas aquele era um aparelho velho, de disco negro onde os números tinham já desaparecido debaixo de uma camada de pó ressequido e acrescentado de gordura.
Demoraram a atender do outro lado e, quando se ouviu uma voz ensonada, o sargento sacudiu a cinza do cigarro para o
lava-loiças do balcão e disse o nome:
"Savala. Desculpe ser muito cedo, capitão. Mas isto não podia esperar."
"O que foi, Savala? São seis e trinta e cinco."
"É, capitão. Encontrámos um morto esta manhã. Não devia ter sido eu, mas calhou, ao ir para casa."
"Onde?"
"Na feira."
"E quem é?"
"Madane. Gustavo Madane. Está morto há um bom bocado. Bom, foi esta noite. Não dormiu em casa."
Savala aguardou que o outro respondesse.
"Esse cabrão não tinha casa, Savala."
Fez-se outro silêncio entre o sargento e o capitão. Depois, o capitão tossiu. O sargento Savala não acrescentou mais nada, como se esperasse que o outro lhe desse uma ordem. Mas o capitão fez-lhe outra pergunta:
"Por que é que foste tu?"
"Ia a passar na avenida para apanhar o barco. Pedi ao Armando para me trazer. Os da limpeza tinham acabado de descobrir o corpo e foram para a estrada pedir ajuda, íamos a passar e tivemos de vir cá dentro. Mandei o Armando telefonar para o comando, à Maxaquene. Quis falar consigo primeiro, havia um telefone por aqui, mas mandei-o à Maxaquene."
"Está certo. Como é que ele estava?"
"Asfixiado, capitão. Uma corda à volta do pescoço, parece. Mas não está lá a corda. Não tem mais nenhuma marca, está tudo perfeito."
Novo silêncio. Savala sabia porquê e o outro confirmou a sua suspeita.
"Coisa séria. Encontramo-nos daqui a uma hora. No meu gabinete, Savala."
"Eu ia para casa."
"Já não vais. Vais depois. Mando alguém levar-te. Não hás-de ir a pé, Savala."
"Sim, senhor."
"Savala", chamou o outro. "Vê-lhe os bolsos, se puderes. De modo que ninguém descubra. Quando aí chegarem quero-
-te longe do gajo. E o que descobrires, guarda bem."
"Sim, senhor. Capitão", disse o sargento Savala.
Depois, regressou ao lugar onde Gustavo Madane tinha sido encontrado morto e de onde afastara os poucos curiosos que tinham começado o trabalho no parque de diversões anexo à Facim - tinham rodeado o cadáver, mas ninguém se atrevera a mexer na capulana que servira para o tapar.
"Toca a sair. Trabalhar. Vamos daqui para fora", gritou então. "Trabalho da polícia. Embora daqui."
Aos poucos, e hesitando, afastaram-se, abandonando o sargento e o morto. Savala ficou então sozinho com os restos de Gustavo Madane. Sabia que tinha de ser rápido e que Armando podia voltar a qualquer momento, embora no campo de jogos do Desportivo de Maxaquene só existisse um telefone e àquela hora fosse pouco provável que alguém tivesse a chave da sala de dentro, dos serviços administrativos. Ajoelhou-se junto do cadáver e, sem o destapar, procurou as algibeiras, primeiro da camisa e, depois, das calças. Tirou a carteira que, por sorte, não tinha ainda sido roubada, meteu a mão bem fundo em cada um dos bolsos à procura de papéis ou de qualquer objecto que viesse a ter interesse e que não convinha que a brigada dos homicídios visse primeiro. Nada. Duas notas soltas de mil meticais, um maço de Suaves, uma caixa de fósforos Zebra e uma chave enferrujada que, à primeira vista, seria a da casa do próprio Gustavo Madane. Abriu a carteira e conferiu - o cartão de residente, que o dava como vivendo na Matola, o bilhete de identidade, o cartão de identificação como funcionário da TDM, e cinquenta mil meticais em notas de dez mil. Nenhum papel mais. Nada.
Era o que restava do homem, provavelmente. Voltou a meter tudo nos bolsos onde mexera, ajeitou o pano que cobria o corpo e acendeu novo Palmar. Estava a fumar cada vez mais e não devia fazê-lo, muito menos logo de manhã, embora tivesse passado a noite a trabalhar na esquadra. Talvez no restaurante lhe arranjassem qualquer coisa de beber. Se tivesse sorte, era capaz de roubar uma Castle, se não houvesse Amstel. Um polícia é um polícia, mesmo às sete da manhã.

                                                                                   2

      O Capitão desligou o telefone. Vivia num prédio antigo no limite da Sommerschield e saiu de casa às sete e meia. Era cedo para um dia normal, mas, depois de ter sido acordado pelo sargento, por volta das sete, teve ainda de fingir-se pouco apressado. Tomou o pequeno-almoço normal, restos do jantar do dia anterior com café que já estava na cafeteira e, depois de ter entrado no carro, parou na 24 de Julho para comprar cigarros, mesmo na esquina diante do Píri-Píri. Geralmente, tinha em casa tabaco de contrabando, mas o fornecimento habitual faltara neste mês. Não gostava de Palmar, mas era o que mais se aproximava do gosto dos Marlboro importados da África do Sul e que o vizinho lhe trazia da Namaacha dentro de um saco de lona esverdeada.
A rua estava velha e gasta, "mais velha do que eu", mas conservava um pouco da dignidade das antigas avenidas habitadas por funcionários coloniais, professores do Liceu Salazar, com pátios nas traseiras dos prédios e pequenos jardins à entrada. A falta de água primeiro, depois o racionamento e, finalmente, os bandos de miúdos que se entretinham a atirar latas de Coca Cola e cigarros mal apagados para os canteiros,  tinham desertificado esses jardins de que sobravam arbustos sem folhas e pequenas lixeiras particulares. Onde não há que comer, não pode haver jardins, disse o capitão baixinho. Mas sabia que era mais do que isso. Via-os da janela, aos miúdos, durante a madrugada, cheirando cola, furando os braços com seringas, ou apenas a beber cerveja. Nessas alturas, abria de repente a persiana e eles fugiam, embora apenas fugissem para outro jardim, para outro pátio, para outra rua. O capitão Domingos Assor sabia isso tudo, mas não mexia um dedo para prender os miúdos porque conhecia o mundo das prisões de Maputo. Seja como for, perguntou então Domingos Assor, quantos anos tem este Fiat? Dez? Talvez dez anos. Abandonado por um grupo de cooperantes italianos, recambiado de Quelimane para Maputo, comprou-o por ser muito barato, tão barato que só pegava porque a rua era inclinada. Entrava, sentava-se, ligava a ignição, embraiava, destravava-o e só engatava a segunda cem metros depois. Uma nuvem de fumo desprendia-se então do escape, os vizinhos vinham à janela, ou anónimos à porta das lojas, e o Fiat Uno vermelho desaparecia entre as árvores da rua, dobrava a esquina e seguia depois na direcção da Marginal. Hoje, o caminho era outro e, por isso, desceu pela avenida Friedrich Engels, encostado à barreira da Maxaquene e à Escola Naval mas, logo adiante, em vez de tomar a avenida 10 de Novembro, como era seu hábito, apanhou a 25 de Setembro directamente. Não era difícil ver, ao longe, os três carros da polícia estacionados em frente do portão da Feira e abrandou mesmo no princípio da rua. Esfregou os olhos. Sabia que não podia ser visto ali, sobretudo se os tipos fossem da esquadra central - não tinha sido avisado oficialmente, essa era a verdade. Que estava ali a fazer, àquela hora? Quem lhe tinha dito que havia problemas e que seria chamado a ser ouvido, mais tarde ou mais cedo? Ele trabalhava no outro lado da cidade, no final da Eduardo Mondlane, e estranhariam. Sabia quem lá estava quase de certeza, e também sabia que iriam ter consigo.
Gustavo Madane tinha sido acusado pela sua esquadra de infracções menores, de desacatos em discotecas, de se servir do seu passado para obter facilidades na função pública, de violar putas menores na marginal da Costa do Sol, ou de conduzir sem carta de condução. Tinham-no debaixo de olho há muito tempo, o tempo suficiente para saberem que, mais tarde ou mais cedo, alguém se vingaria de alguma coisa, fosse ela qual fosse. O irmão de uma miúda da Costa do Sol, um vendedor de Xipamanine ou do Estrela Vermelha, alguém a mando dos monhés. Alguém se vingaria, alguém lhe cortaria o pescoço com uma navalhada seca, alguém o mataria com um tiro numa rua perto do mercado, alguém o abandonaria morto na estação, no meio dos carris, alguém o atiraria ao mar, alguém pagaria a um pescador para o lançar ao mar, se houvesse dinheiro para isso, porque o morto, só por si, tinha um preço muito baixo, tão baixo que os tubarões talvez se recusassem a comê-lo.
O capitão também não gostava de Madane. Madane, ele sabia, fora um dos organizadores dos campos de reeducação e abusara do seu posto e das suas funções. Tinha sido um dos companheiros de Samora, está certo que agora não tinha peso absolutamente nenhum, desde que o seu nome fora inscrito nas listas de desmobilizados em 1993, mas continuava a chamar-se Gustavo Madane e, na sua memória, o nome de Gustavo Madane não era uma boa recordação. Nem boa nem má, a falar verdade: era mais um pesadelo. Não gostara, nunca, de Gustavo Madane e isso tinha a ver, necessariamente, com questões pessoais, desde que o seu irmão fora preso em 1985, quando tentava atravessar a fronteira com a África do Sul (e dado como desaparecido um ano mais tarde) e a sua namorada de então apontada como contra-revolucionária e afastada do emprego na rádio. Despedida. Emigrou uns anos depois e vivia agora em Portugal. Já não eram namorados e não poderiam casar-se, tanto mais que ele era agora, também, um homem casado, com um filho pequeno e talvez outro a caminho, como lhe tinha sugerido Isalinda por estes dias.
Tinha todas as razões para odiar Gustavo Madane. E havia outra, ainda. Ou mesmo duas. A primeira é que se falava da hipótese de Madane regressar à polícia, agora que o exército comum, que tinha reunido os homens da Frelimo e da Renamo, deixara a polícia nas mãos dos homens mais "duros" do governo - e falava-se de ele ir para a sua unidade. Não com um posto propriamente dito, nem sequer um operacional, mas para a secretaria, e isso incomodava-o ainda mais, porque, então, Madane teria de trabalhar directamente consigo. O capitão sabia que Madane iria fazer os possíveis por voltar a ser o mesmo Madane de há anos atrás, que o criticara por viver com uma mulata (e casara, aliás, com Isalinda, uma mulata de Pemba) e que fora afastado com o fim da guerra. Havia muitos como ele. Mas nenhum que fosse exactamente como ele. E queixar-se-ia de andar a ser perseguido pelo capitão. Ele sabia.
Mas havia uma segunda razão que seria necessário procurar no passado da sua própria família, quando, ainda antes da independência, Madane apontara o seu pai como um traidor e um lacaio dos portugueses. É verdade que o seu pai trabalhara em casa de um administrador de província, no Norte, perto da então Porto Amélia, Pemba, em Quissanga. Mas fora um homem justo e corajoso quando se tratou de lutar e de apoiar os que combatiam no mato. A cena foi conhecida de muitos: uns dias antes da independência, em 1975, uma coluna de soldados portugueses ia, num autocarro de um colégio entretanto fechado, de Pemba para Memba, um pouco mais ao sul, quando foi mandada parar por um grupo de soldados da Frelimo, armados de algumas metralhadoras. Os portugueses iam desarmados e de fim-de-semana. O que os mandou parar pediu-lhes para tirarem uma fotografia de grupo e o capitão português mandou-lha alguns dias depois, uma semana antes de 25 de Setembro. Esse moçambicano era o seu pai e Madane acusou-o de traição e de continuar a ser amigo dos portugueses, mesmo quando só faltavam alguns dias para a independência.
O caso nunca ficou resolvido entre os dois e só a morte do seu pai, em 1990, interrompeu a vigilância mútua a que os dois se tinham dedicado desde essa altura. Madane seria desmobilizado três anos depois, mas ele seria promovido em 1994 - um jovem capitão da polícia, da nova polícia democrática de Moçambique em ano de eleições. Um polícia com feitio esquisito. Que tinha umas "vaipadas de intelectual", como se dizia na esquadra. Que parava na esplanada do Píri-Píri nas noites de sexta-feira. "És meio branco", disse-lhe o chefe. "Meio branco, pá, esse é o teu defeito." "Branco da cor do carvão."
Fosse como fosse, era arriscado parar na Feira. Voltou atrás, passou pela avenida 10 de Novembro, seguiu até ao porto, evitou a esquadra da Praça 25 de Junho, e subiu a avenida Samora Machel até poder, diante da Sé, voltar à esquerda para apanhar a Ho Chi Minh e, depois, a Fernandes Farinha e a Eduardo Mondlane.
O sargento Savala esperara por ele, como prometera, e estava sentado a uma das secretárias da sala dos operacionais e tinha aspecto de ter sono. O capitão entrou no seu gabinete e pediu-lhe, com um gesto, que entrasse com ele. Savala seguiu--o e esperou que o capitão se sentasse para se sentar também.
"Quem é que foi lá?"
"O Bogamayo e os dele."
"Não se diz 'os dele', sargento Savala. Não são 'os dele'. São polícias como tu e não quero que digam que és 'dos dele' quando disserem que trabalhas comigo."
"Sim, capitão. Mas já telefonaram para cá. E querem falar consigo. Diz-se aí fora que podia ter sido alguém cá. Bom, são vozes, não é? Mas diz-se que podia ter sido alguém de dentro. Não se sabe é quem."
"Podia ter sido eu, não podia?"
"É isso que querem dizer. Ou o meu capitão ou alguém que até trabalha consigo."
"Um dos dele."
"Dos dele?"
"Dos que trabalham comigo, Savala. Podias ter sido tu. Foi isso que ouviste? Devem ter-te dito isso mesmo. Lá o despacharam, foi isso que te disseram?"
"Foi."
"E quem telefonou?"
"O Bogamayo."
     "Gente do alto", comentou o capitão antes de ouvir o telefone tocar. Podia ser o Bogamayo. Podia ser Isalinda, que se encontrava em Pemba, em casa dos pais, a dizer que estava, de facto, grávida. Podia não ser ninguém.
"Bogamayo. Bons-dias, camarada."
"Bom-dia."
"Agora já não se diz 'camarada', nunca se sabe com quem se fala, mas eu sabia que era consigo."
A verdade é que o capitão também não gostava de Bogamayo. A proximidade da esquadra deste em relação ao palácio presidencial fazia dele um homem que podia ver os ministros, falar a um assessor do presidente, entrar nas salas dos computadores ou, apenas, ter acesso a informações privilegiadas que a sua esquadra nunca teria. Nos caniços não havia criminosos especiais, só rotinas, serviços normais, assaltos que ficam por resolver. Além disso, Bogamayo usava a sua voz como se estivesse sempre a dar ordens e pudesse dá-las sempre que quisesse e havia um problema, ou seja, Bogamayo tinha um problema e esse problema era o ypsilon do nome, porque o seu verdadeiro nome era Bogamayo, sim, mas sem ypsilon. Usara-o para parecer mais africano e pedira a alteração no registo de identidade. Ficara Bogamayo, mas era Afonso Bogamaio, natural de Maputo na altura em que Maputo era Lourenço Marques, coisa que não interessava, cinquenta e dois anos, curso de Direito, a mãe era de Quelimane, o pai de Maputo. Murmurava-se sobre a mãe: que era de uma família importante, com negócios tanto em Quelimane como em Nampula. Assor nunca olhara bem os olhos de Bogamayo para detectar essa importância, mas achava estranho que uma família com negócios em Quelimane tivesse fornecido um filho para a polícia de investigação criminal, só que essas coisas aconteciam. O curso de Direito era um bacharelato útil para subir na hierarquia, mas não tão eficaz como a proximidade da Ponta Vermelha, o acesso aos nomes dos juizes, aos oficiais do Tribunal Provincial e ao gabinete do procurador. De resto, quando o capitão Domingos Assor falava com Bogamayo, sentia sempre um sabor amargo na boca, uma espécie de azia que lhe limitava o raciocínio. Bogamayo, Bogamayo, estás sempre a meter-te no meu caminho.
"Já sabe do que aconteceu?"
"Acontece muita coisa todos os dias."
"É verdade. Maputo é cada vez mais um problema hoje em dia. Prostituição, droga, tráfico, muito dinheiro, crime a sério. Mas não falemos no ar. Hoje de manhã um dos seus homens descobriu na Facim o cadáver de um cidadão mais ou menos conhecido. Muito conhecido seu, se me faço entender."
"Não foi ele que o descobriu."
"Ah. Já sabe de quem se trata, portanto?"
"Tinha de saber, não?"
"E tão cedo? Mas Gustavo Madane era seu. Toda a gente sabe, sempre que podiam metiam-se com ele. Foi preso duas vezes no último ano."
"Como qualquer pessoa pode ser, se infringe a lei."
"Todos os cidadãos são iguais perante a lei, capitão, mas para si o Madane era duas vezes cidadão, você perseguia-o vinte e quatro horas por dia, era uma obsessão. Essa é a verdade. Mas agora teve azar, capitão Assor. A sua zona depende do comando-geral e o comando-geral não gostou de saber que um homem daí chegou primeiro do que nós, sobretudo porque esse seu subordinado não tinha nada que andar naquele sítio. Tínhamos, portanto, de falar. Mas houve uma novidade, sabe como é, há novidades todos dias, agora. Moçambique  fervilha de novidades, é o que é. Estivemos a ver melhor e descobrimos que temos, de facto, muito trabalho por aqui. E pensámos que o melhor era entregar Madane a quem melhor conhecia Madane. Dentro de certos limites, claro está, nomeadamente o que tem a ver com o sigilo e a legalidade. Portanto, Madane é seu. Está morto, a falar verdade, e não nos serve para nada. Mais tarde ou mais cedo teria de ser seu. O que temos connosco não vale nada e também não vale a pena guardá-lo por aqui. Vamos mandá-lo para si. O caso, evidentemente. Porque o corpo já seguiu."
O capitão compreendeu isso, mas tarde de mais, ao desligar o telefone. Bogamayo tinha despachado um cadáver. Em pele e osso, só. Já não havia nada que lhes interessasse.

(continua)

Edição de 2000


Adelto Gonçalves comenta "Lourenço Marques" de Francisco José Viegas
Jornal 1º de Janeiro de 03/03/2003

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