A BIBLIOTECA DO MACUA

iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii



LIVROS & AUTORES QUE A MOÇAMBIQUE DIZEM RESPEITO



JÚLIO CARRILHO



Image of nonucp01.jpg


DEDICATÓRIA
Aos meus pais.

À versatilidade cultural da tia Fato.
À juventude encorajadora da Gabita.
Aos olhos de lupa da Maria João.


UMA BIOGRAFIA

Ibo há muito convocou os poetas para a cantarem. A despeito, Júlio Carrilho acrescenta-lhe, desde "Dentro de Mim Outra Ilha", livro editado em 1995, um novo olhar. A ilha, as gentes, as vozes, os murmúrios, o tempo e os sabores que assomam ao tempo da adolescência: amêndoas, atas, maçanicas e goiabas. Neste manancial de beleza, que se esconde num título provavelmente estranho - "Nónumar" - há uma escrita que se desamarra do exotismo muito peculiar da vocação insular da nossa lírica. Há ainda a experiência do homem político que habita estes poemas, sem esconder a mordacidade irónica dos seus versos. Também reside, neste belo livro, a sensibilidade do arquitecto. Afinal, circunstâncias biográficas que ratificam uma poesia que se reinventou numa década onde aconteceu o refluxo da literatura moçambicana. Júlio Carrilho, que nascera em Pemba, a 26 de Junho de 1946, percorrera Ibo, Pemba, Beira e Maputo onde estudou, antes de se formar em Arquitectura em Lisboa, foi uma das raras revelações, no território da poesia, que nos reconciliaram com os sombrios anos 90. Antes disso, fizera o seu caminho pelos trilhos da militância político-partidária. Fora ministro - no governo de transição e no pós-independência. Em 1986 desceria dos "degraus da fantasia/de lá dos píncaros do dirigir". Hoje divide-se entre o ensino e o exercício da profissão de arquitecto. "Do esplendor dorido das lembranças" fita "quarenta e tal quilómetros quadrados/de modorras viradas para a praia". Não deixa de se indignar perante o carnaval da estupidez dos que se arvoram em heróis e ameaçam a nossa experiência colectiva. Outra vez Júlio Carrilho surpreende-nos. Agora nesta viagem, na qual revisita o passado, expurga alguns dos seus fantasmas e se volta para o contrapeso da memória. Em busca de algum refúgio, por certo.
Nelson Saute


RESPIGOS

Descidos os degraus da fantasia
de lá dos píncaros do dirigir
olhar distante a desbravar os sonhos
um vale de pudores a desfingir

de cada patamar os grãos de mágoa
escoam a estender-se num remanso
uma praia de pedras a marcar
saber de experiência em que descanso

esse descanso vai valer coragem
gelar temores conservar a calma
nos nervos a boiar em mil mensagens

Há ironias no amansar da alma:
o embarcar na cor d'outra miragem
o fresco ressoar de velhas palmas

O caos que variou a nossa margem
e abriu-a em curvas para o mar ingente
trouxe-nos mil abraços e chantagem
e cacos de vidro na areia ardente

São tantas enseadas que interagem
tão funda a introspecção e o olhar dolente
que a guerra quando se abre na paisagem
capricha no ferir que se consente
É neste variar de realidades
no calar de desgostos e verdades
que a gente amadurece o seu olhar

E no saber mestiço de vontades
os ódios se travestem de irmandade
e as armas se transferem p'ro bazar

Há uma nave de ontem encalhada
no recife da nossa independência
retém-se na saudade decantada
que a História apressa com impaciência

As pedras enegrecem na toada
que o vento lança com sua incidência
um riquexó prostrado na calçada
esvai-se na tortura da abstinência

Nos ares moles do amplo amanhecer
nas paredes de ócios a escorrer
jamais ressoam mandos de alvorada

Há muita cerimónia por fazer
nos quartos sombrios do entardecer
para tirar do encalhe a nau cambada
Adormecido nos blocos das ameias
que denteiam a linha do horizonte
o tempo espera erguer-se um novo trono
que a era dos odores de desdém
nas raízes de uma imensa mangueira
se retêm

Ninguém sonda o horizonte
ninguém meneia a cabeça
porque o transe é um ficar
ficar de costas para a terra
a repetir o mar
todas as noites
as manhãs inteiras
As pedras olham-nos
nas brisas a varrer detritos
com uma música a elas me ligando
com elas me deixando em harmonia
A parada dos dias só nos vem
da terra
numa vela a varar o fosso azul:
guarda-a um cântico com braços leves
deste novo ócio a desenhar
labirintos de gente acantonada
a Sul

Estranha forma de engolir subúrbios
de dar sobranceria à urbe nobre
não só com cal não só com traça forte
para afastar o olhar do bairro pobre

As gentes simples que fazem lembranças
que as fundem finas as tecem em prata
pintaram seus sorrisos de brancura
cercando-se de beijos de mulata

Se ateiam lares no fundo rochoso
regados de suor antepassado
na superfície incerta de pedreira
impera o tufo pelo maticado

É este o Sul que eu abro nos meus livros
nas ilhas ou nas terras adornadas
que teimam em subir com o mar desperto
e garrir-se de cor e gargalhadas

Dói sempre a indiferença
Face ao pedido de palavra
Das ruínas.
Mas doíam também as diferenças
Com que elas dividiam
Nossas sinas


ENQUADRAMENTOS

À frente a paisagem translúcida, a não precisar de falar. O azul do horizonte é uma ausência. Um nada colorido. Atravessam-no as asas brancas das gaivotas. Rápidas, silenciosas, fulminantes. A vida passa; efémera, filiforme. A desaparecer num mergulho oblíquo na massa movediça de que se cobre a terra. É isso o meu mundo. Um bolo informe de ilusões reflectindo o vazio sobre si suspenso. Rodeado de um molho cuja presença quotidiana nos torna fáceis. E nesse alimento estou posicionado. Pronto a ser devorado como migalha de uma fatia terrosa, rica dos nutrientes imaginários que a lâmina da ambição desventra.

Por todo o lado a água como se tudo nela originasse. Misteriosa, avassaladora. Tumba e fonte. Semente e choro. Ondeia a silhueta sobre o nada e se define. Sussurra, ulula, berra. E fala. Como se fosse uma máquina de sons e de metamorfoses. É isso a
água. Uma modelação infinita da superfície. A pôr a lei no caos e o caos na lei de sermos.
Tanto azul a colorir a terra. A uniformizá-la para leste e para poente. A esfriar a norte, a tiritar a sul na mais vasta geleira. A água a apostar a vida para nós. E nós na ignorância de um dia a obrigarmos a não nos servir. Mas na sua alegria teremos sempre o consolo do seu ondular.
De repente a terra. A descoberta das cores que a povoam. Do preto ao ocre. Cada tom a revelar os seus segredos. A passar mensagens. Incipientemente a acordar-me para as dores da luz penetrando forte pela consciência. Afinal só eram sombras o que eu percebia na inocência. Afinal a vida estava lá fora a contorcer-se. Mosaico de futuro a construir-se em cada um dos grãos de areia. A lângua de lama seca a repartir-se ao sol. E um expediente que quebra cada brilho para me arrumar o pensamento.


Mais para lá o fogo. O calor que amadurece a vida e a define. A labareda eterna da desconfiança. O ser e o parecer. A contradição. O exacerbamento das paixões. O negro e a esperança, o vermelho e o medo. A teimosia bruxuleante da animação das formas. A modelação dos sentimentos crescendo: do coração azulado ao cinza que se ergue sobre o rubro peito. Morre tudo o que os seus dedos tocam: o ar, o verde, o frio e o sonho. No âmago dos lares se acantona dobrado sobre si. Poderoso exala regras consumindo todos os outros elementos. Até descobrir que num simples sopro ele se extingue.
O nada contra a água. A terra pelo fogo. E sob a norma eu. Um equilíbrio que se define pelo desequilíbrio eterno dos caminhos.
Por que rumos andei para justificar os traumas, tão velhos escorrendo calmos pela silhueta hindi dos meu avós? Eles sabiam que as esperas nunca perdem tempo. Porque o tempo é isso mesmo. Uma sequência eterna de mudanças, que logo que o são deixam de sê-lo.
Atrás de mim somente uma infância para preencher de todas as verdades. Severa, de cenho franzido, esquelética. Acocorada na
comodidade de olhar sem pretensões o mundo modelado à escala dos adultos. Uma miragem de caras deformadas pela perspectiva teatral.
Quem me diria que mais tarde estaria também nessa imponente tela, dentro e fora ao mesmo tempo, povoando os soberbos enquadramentos de Mantegna?
Nada mais do que um motivo de recuo. Uma simples procura de retaguardas insuspeitas. Um resguardo das minha inteligência poluída. É que hoje se faz o dia a poluir. Depois empenhamo-nos em doutrinas reestruturantes. E sem nos acabarmos, a tortura de mais um recomeço.
Só cada um pode resgatar a sua própria alma.
E então? Lancei-me na savana em busca do fosso do descanso. Encontrei-o. Mas encontrei também o dono da planície. O dono da erva. O dono inclusive do meu próprio correr. Agora só as recordações me podem resgatar nos amores que eu próprio entristeci.




IBO E GENTE..........................................
Image of ball_pink.gif

Edição de 2001

TOP

Image of arrow_big_right.gif

Image of eth-bk.gif