IBO E GENTE
(Porta de água)
Quarenta e tal quilómetros quadrados de modorras viradas
para a praia escoam dos solares escancarados a deixar os mortos a olhar luzentes cristas
de água de cambraia
Não sei ainda se isto é alegria deixada até ao estoiro da miséria mas
a calma tecida dia-a-dia tem o vagar da pressa que se quer no endógeno assumir-se de matéria
Ah porta minha que me deste as águas para buscar as faces da verdade hoje descontraída em
tuas mágoas: não tens a quem explicar o teu saber que a nudez distorce sem maldade.
Teremos
que esperar que se decante no teu líquido palco o som dos remos se afinem silhuetas de ar cortante
para depois por ruas sem licença abrirmos planos que só nós podemos
(casquinha)
Um
vulto emerso na casquinha tem asas de pau a equilibrar o tronco como cintura numa dança de água
vasado tronco de árvore a nadar Se um sobressalto de ar lhe enfuna o pensamento a concha
de tecido apressa-o na onda a respigar
(maré vazante)
Só a tensão feminina sabe
avaliar os gostos que se guardam na maré vazante nos trilhos invisíveis pontuando o manto multicolorido
de algas tatuando areias.
Não há temores à espreita nem monstros que se atrevam a impedir
o brilho das cipreias. É o maravilhoso a desvendar-se no afastar das águas; O pátio de recreio
devolvido alarga-se pelo areal da praia tanto quanto diminui o marulhar das ondas contra o paredão
desarrumado a resguardar as aulas. Papagueantes
Os meninos recitam "a Clarinha e as pombas"
com um pesado silêncio de palmatória em fundo.
(Amas e amos)
Babos, Amas, Muénhes,
Nunos dão-nos o destino à inocência para que os muros altos nos desvendem seus quintais ilhados
e sejam limpas e lisas as varandas da nossa adolescência
(sexo)
Da tarde que se
apressa emerge o sexo cantando exótico ao luar sincero um apelo irresistível apregoa molhes
de juventude aonde qualquer idade desembarca com palavras curvas com esmero
(tambores)
São os tambores da noite distantes são as folhas das palmeiras bêbedas constantes são
as pinceladas das brisas sibilantes são os lussúnguis finos ondulantes a panejar o apetite
discreto dos amantes
(e a cruz crescente?...)
Não é da gente certa a vila desenhada
é de salamaleques e de casarões só nos quintais fervilham vozes coloridas de sarcasmo de
interrogações Não são de gente aberta esses jardins guardados na geometria estrita das pedras
caiadas apenas corvos passeiam sobre eles seu negrume seu vôo vasto e livre isento de volume
Não são brancos os dentes que a alvura do sorriso negro nos ensina são apenas portos de sinceridade
um contraponto neutro de evasão do forte colorido de paixões contidas nesse cerco de água preto
vermelho e açafrão
A cruz aqui apenas tem esse significado o de nos cruzarmos com o mundo
para não morrer
Tantos de nós a aguardar um Deus vindo de longe, como se as religiões,
que põem todo o seu afã em conquistar-nos, estivessem a partilhar-nos com o acordo da nossa ironia. Que
diferença faz a sombra da torre sineira por consolo, ou a delicadeza curva do crescente fino a coroar-nos?
Somos de qualquer crença que nos lave as mágoas as pilhagens, a desvalorização e o opróbrio, os roubos
locais e internacionais. Entre o padre do oeste e o maulana oriental há essa paz, do almofadado saber
da nossa convivência, desarmando cismas nas ofertas recíprocas que nos enviamos nos dias da festa do
outro.
(Ser mwani)
Não é que ser mulato me abra portas: é preciso que se tenha
aprendido a beber esse saber da praia qualquer que seja a dor que se transporta A Guerra aqui
não se reproduz. Sofre-se. A escravatura aqui não se aprimora. Degrada-se: na sabedoria dos escravos
na subtileza do servir dos servos na paciência dos barcos adornados Tudo sucumbe no equilíbrio
sustentável da intriga viscosamente escrutinada nas sub-ilhas de murmúrios dos quintais fechados
(do resto)
Do resto sei somente que a Quirimba é um palmar teutão um batalhão de
coqueiros em parada; Quirambo um cesto de songomas que não esqueço; Matémwé imensa mancha aprisionada
num horizonte azul de lágrimas salgadas e pudores grande e vazia; só dona Elisa e o Kesso
na ausência pendular dos pescadores
(na brisa)
Os lenços esculpidos na cabeça de
formas leves a abrigar o rosto desvendam cores para que não esmoreça a luz que morre atrás do
dia posto
O coro agarra firme mas sem pressa o olhar da multidão a que me encosto os corpos
e a toada uma só peça as vozes lentas a dobrar-me o gosto
Ah brisa feminina a alongar traços
de conchas várias a nascer dos braços que a ilha pelos séculos coou
Do mundo se juntaram
mil pedaços cor e tecidos neste porto escasso que a ponte de mariscos adensou
(me
amansa)
As linhas que se desenrolam das mãos da madrugada nem sempre no seu termo apagam
peixes nem sempre na sua tensão se desenganam
mas levam nos olhos um prazer de vida inexplicável
na carapinha levezas adoçadas de orientes nos cofiós adornos de sextas-feiras brancas
confundem-se
nos terços de várias crenças deuses de água a deslizar sentenças nas noites prateadas de luar
e me amanso e me moldam sonhos infantis para que o ruído dos dias se harmonize duros dias de
aprender vénias controlar humores
temos de ser capazes de adivinhar as máscaras do vento a
modelar matizes no calar das faces da mágoa que se tem no peito presa
é que a doçura infinita
dos saberes forros carrega em si milhares de desimpressões no choro de alegria ou num subtil
sorriso de tristeza
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